De frente para o encontro dos rios Carmo e Piranga, na formação do rio Doce em Minas Gerais, a pescadora Maria da Penha Rocha lamenta.
"Quem é ribeirinho, mora em roça, depende do rio. Eu não sei como as pessoas não entendem o valor que tem isso aqui. O que nos foi tirado", diz ela, na divisa entre os municípios de Rio Doce, Ponte Nova e Santa Cruz do Escalvado, na Zona da Mata mineira.
Há dez anos, a rotina dela e de outras pessoas da região que mantinham relação direta com o rio foi revirada com o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, cidade distante a mais de 100 quilômetros.
Os cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos que se desprenderam da barragem da Samarco em 5 de novembro de 2015 passaram pelos rios Gualaxo do Norte e Carmo e chegaram na manhã do dia seguinte ao Doce.
A lama seguiu seu trajeto na bacia e chegou ao litoral do Espírito Santo no dia 21 daquele mês, em episódio considerado pelo MPF (Ministério Público Federal) como o maior desastre ambiental do país.
Penha, que é presidente da associação de pescadores de Santa Cruz do Escalvado e participa do conselho do governo federal sobre o rio Doce, detalha como os rejeitos que chegaram há dez anos ainda impactam diariamente a comunidade local.
"Nós pertencemos ao rio, e hoje não temos vida. As lembranças são muito boas para estar hoje nesta situação de não poder usar a nossa casa. Isso aqui não era só uma fonte de renda, era tudo. Tudo a gente extraía do rio. O peixe, a faiscação [forma de garimpo artesanal], o lazer, as amizades", afirma.
Procurada, a Samarco afirma que o monitoramento hídrico na bacia do rio Doce indica que a qualidade da água apresenta parâmetros similares àqueles anteriores ao rompimento da barragem de Fundão.
Além de ter causado impactos financeiros, a inviabilidade de atividades no rio deixou traumas na comunidade, que viu aumentar as pessoas dependentes de álcool e drogas, afirma a presidente da associação.
"É uma maior tristeza quando sei que uma pessoa que vivia aqui, que tinha uma vida saudável, hoje está com uma vida totalmente destruída porque a cabeça foi fraca. Ela se sentiu perdida sem o rio", diz Penha.
Ela afirma que a situação tende a piorar após março de 2026, quando está previsto que a Samarco deixe de pagar um auxílio mensal para pescadores e faiscadores que perderam renda com o rompimento da barragem.
O fim do benefício, que garante um salário mínimo e uma cesta básica para os atingidos e mais um adicional para dependentes, está previsto no acordo de repactuação assinado por governos e mineradoras.
"Como é que a gente vai fazer se o rio ainda não está bom para pescar? Quem está lá fora [referindo-se aos órgãos que assinaram a repactuação] não enxerga isso", diz.
A Samarco afirma que além do auxílio, o novo acordo previu pagamento de cerca de R$ 885 milhões para "ações e medidas estruturantes" para faiscadores. Os recursos poderão ser acessados pela comunidade caso opte pela reparação definitiva em processo que deve acontecer em até seis meses.
A mineradora não detalhou qual opção restará aos pescadores, que seguem sem a possibilidade de alcançar renda a partir do rio.
O senso de comunidade citado por Penha era ainda mais presente entre os faiscadores. A prática consiste em uma forma artesanal e manual de garimpo, praticada às margens de rios, em que são procuradas pequenas partículas de ouro misturadas à areia e ao cascalho.
"Muitas das vezes você ficava a semana toda na beira do rio. Porque ia fazer a faiscação e fazia um acampamento para pescar à noite, principalmente nos finais de semana. Hoje é até difícil encontrar com os colegas, porque não tem esse encontro marcado no rio", diz Geraldo Marcelino de Souza, conhecido como Ladinho.
A tradição, que foi repassada entre gerações naquela região, foi interrompida desde o primeiro dia que o rejeito atingiu o rio, afirma o também faiscador Geraldo Felipe dos Santos, o Tuzinho.
"Faiscação aqui acabou. Não existe, não tem como mais. Às vezes, as pessoas ainda saem tentando em algum canto de barranco, mas não adianta, não consegue", diz.
Tuzinho e Ladinho dizem que a tradição não deve seguir pelas próximas gerações porque não acreditam que todo o rejeito que está depositado no leito do rio e em suas margens será um dia retirado. Para eles, assim como para Penha, o Doce está morto.
A discussão sobre a retirada de rejeitos motiva debates e estudos entre especialistas e autoridades ambientais.
A grande discussão consiste sobre o que fazer a respeito dos cerca de 10 milhões de metros cúbicos que estão depositados em área da usina hidrelétrica Risoleta Neves.
Mais conhecida como usina de Candonga, ela fica no limite entre as cidades de Santa Cruz e Rio Doce e voltou a operar em 2023.
O acordo de repactuação assinado no ano passado por autoridades públicas e mineradoras determinou que caberá ao Ibama decidir sobre o licenciamento ambiental da área e sobre a retirada total, parcial ou a manutenção dos rejeitos.
"Retirar os rejeitos implica também transportá-los para um outro local e haver uma disposição [armazenamento], então há uma série de impactos relacionados a isso", afirma Edmilson Maturana, coordenador-geral de licenciamento ambiental de empreendimentos fluviais e pontuais terrestres do Ibama.
Ele explica que os rejeitos depositados na usina contêm uma porção de lama significativa, que torna difícil o armazenamento desse material em pilhas, mais adequadas para a estabilização do material.
Ao mesmo tempo, Maturana diz que o rejeito que está na usina não é inerte, ou seja, pode liberar substâncias prejudiciais ao meio ambiente, principalmente em períodos de chuva. O técnico afirma, porém, que o material não apresenta toxicidade crônica.
"A gente como técnico percebe que há uma dificuldade nessa tomada de decisão", diz.
O acordo de repactuação determina que, caso o Ibama conclua que uma parte do material não será retirada da usina, caberá à Samarco ressarcir os cofres públicos em R$ 450 o metro cúbico do sedimento que ficará na usina.
"Mas não é com esse cenário que a gente trabalha, a gente está focado na retirada mesmo e no trabalho de avaliação", diz Sergio Domingues, superintendente do Ibama em Minas Gerais.
Ele afirma que as decisões do Ibama serão baseadas em consultas públicas e avaliações junto à comunidade afetada. A decisão sobre a retirada dos rejeitos está prevista para ser tomada de dois anos meio a cinco anos.
Outra preocupação é sobre os rejeitos que estão nas margens dos rios e que são levados para o leito em períodos de chuva.
Miguel Felippe, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), afirma que o rio Doce nunca retornará às condições que existiam antes do rompimento, mas que a solução ideal passa pela retirada total do rejeito.
"A opção não é simples, considerando que há uma necessidade de maquinário, tem de ser feito com critério, conjunto técnico adequado, mas essa era de fato a melhor opção. Apesar de ser a mais custosa do ponto de vista financeiro, do ponto de vista ambiental é a única opção possível", afirma.
O professor diz que a estratégia da retirada dos rejeitos das margens também é necessária para a melhora da qualidade da água ao ponto de a pesca ser restabelecida no Doce.
"Caso contrário, a gente começa a enxugar gelo. Tenta melhorar a qualidade da água, mas vem a chuva e leva os rejeitos de novo para o rio".
A preocupação com a permanência dos rejeitos se estende por todo o trajeto do rio Doce, até o Espírito Santo.
Para José Carlos Loss Júnior, presidente do comitê da bacia hidrográfica do rio Doce, a situação é semelhante a de "um paciente que ainda está com a bala dentro do corpo".
Ele cita os municípios de Colatina (ES) e Governador Valadares (MG), que têm restrição de fontes alternativas de abastecimento além do Doce e onde a população ainda não tem plena confiança no consumo da água, mesmo dez anos após a tragédia.
A Samarco diz que estão em processo de recuperação ambiental mais de 160 hectares, em mais de 180 propriedades, nos municípios de Mariana, Barra Longa, Ponte Nova, Santa Cruz do Escalvado e Rio Doce.
"Os trabalhos de cercamento e proteção atualmente alcançam 42,7 mil hectares de um total de 50 mil previstos para reflorestamento compensatório, além de 3,9 mil nascentes protegidas em toda a bacia", diz a empresa.
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